segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

A traição de Cristo (O Beijo de Judas)




A traição a Cristo, ou (O beijo de Judas)

Giotto di Bondone (1267-1337)
Fresco na Capela da Arena, Pádua
(c. 1303/06)
182 x 182 cm






1.1. O AUTOR
GIOTTO di BONDONE
Giotto di Bondone nasceu em Colle di Vespignano no ano de 1267. Esta é uma aldeia da região de Mugello, na Toscânia em Itália, a nordeste de Florença. Segundo consta, o pai de nome Bondone, era dono de uma pequena propriedade rural nesta aldeia e Giotto assim chamado por ser o oitavo filho, foi criado a pastorear ovelhas. Foi Lorenzo Ghiberti que nos seus Comentários escritos em meados do século XV narrou a história da “descoberta” de Giotto como artista e como Cimabue levou o menino para a sua oficina, depois de pedir ao pai autorização, por ter ficado impressionado com o seu talento especial para o desenho, pois observara-o no campo enquanto desenhava uma das suas ovelhas com carvão numa rocha. Desde então os críticos repetem esta história de tom fictício e romântico.
No entanto, quaisquer que tenham sido as circunstâncias do encontro de Cimabue com o rapaz é quase certo que Giotto se tornou aprendiz de Cimabue ainda muito novo, e provavelmente se transferiu para a sua oficina em Florença perto do final da década de 1270, talvez em 1277. Também é certo que o naturalismo do mestre Cimabue produto da sua estada em Roma, interessou profundamente ao jovem aprendiz tendo formado a base do seu característico estilo revolucionário. Cimabue deixou Florença para trabalhar na Basílica em Assis em 1280 e é provável que Giotto tenha continuado com os assistentes do mestre até 1285, altura em que viajou a Roma. Cerca de dois anos depois transferiu-se para Assis para trabalhar na Basílica sendo provável que já trabalhasse por conta própria. Também já dispunha de considerável reputação como pintor, e Cimabue tinha regressado a Florença.
Não nos deteremos em falar do ciclo de trabalhos em Assis, das 28 cenas que decoram a Basílica Superior, nem do trabalho desenvolvido em Roma no ano de 1300 por encomenda do Papa Bonifácio VIII depois de ter terminado os trabalhos em Assis no ano anterior. Em 1301 comprou uma casa em Florença, onde viveu pouco tempo, pois foi chamado pelos Frades Menores para pintar um ciclo de frescos numa capela dedicada a S. Francisco, em Pádua.

1.2. O LOCAL
CAPELA DA ARENA
Foi durante esta viagem a Pádua, que Giotto recebeu a sua primeira encomenda conhecida de um cliente secular, chamado Enrico degli Scrovegni. Este influente homem de posses; obteve em 1302 permissão do bispo de Pádua para erguer uma capela no lugar de um antigo anfiteatro romano. Apesar dos protestos esta capela foi consagrada três anos depois com grande cerimónia ficando conhecida como Capela Arena ou Capela Scrovegni.
Cerca de 1303, Scrovegni pediu a Giotto que decorasse a capela com cenas da vida de Cristo e da Virgem. O interior simples adequou-se de maneira ideal ao estilo monumental de Giotto. Os frescos que produziu não tinham precedentes na sua força dramática e no vigor das suas cores. O dono da capela tinha grande orgulho em exibir o seu primoroso interior, abrindo periodicamente o local às visitas públicas. A fama tornou-se tal, que o Papa Bento XI concedeu indulgência a todos a todos aqueles que fizessem peregrinação à capela; tornando-se assim os frescos, amplamente conhecidos.

Este é o interior da pequena e famosa capela Arena, em Pádua. Aqui podem ser vistos um dos maiores tesouros da história da arte: O belo ciclo de frescos que Giotto pintou para Enrico degli Scrovegni. O fresco que está sendo analisado. “A traição de Jesus” ou, “O Beijo de Judas” encontra-se no canto inferior direito.

1.3. A TÉCNICA

O FRESCO
Giotto utilizou a técnica da pintura a fresco, de recente ressurgimento. Os artistas medievais trabalhavam quase exclusivamente em mosaico, técnica que naturalmente se prestava a um estilo decorativo e impessoal. No tempo de Giotto, entretanto, alguns pintores retomaram a técnica da pintura mural, que se adequava perfeitamente ao estilo do artista florentino. Nesta capela as cenas foram pintadas sobre o estuque ainda húmido, ou buon fresco, como era conhecido.
O ressurgimento da pintura a fresco coincidiu na Itália com o crescimento das novas ordens de frades mendicantes, como os Franciscanos e os Dominicanos. Estas ordens dedicavam-se particularmente à pregação e erguiam templos imensos para acomodar as suas congregações cada vez maiores. O mosaico tinha uma execução muito demorada e dispendiosa para que fosse utilizado na decoração dessas enormes basílicas, de modo que as ordens passaram a encomendar grandes ciclos de frescos narrativos para reforçar os ensinamentos religiosos.
No caso da pintura a fresco, os pigmentos eram aplicados em trechos de gesso húmido que secavam com relativa rapidez, normalmente 48 horas. A pintura teria de ser inteiramente terminada nesse período. Uma vez que o gesso secava, os erros só podiam ser corrigidos raspando a porção de gesso e começando novamente ou repintando sobre o gesso seco, com efeitos menos duradouros.
O fresco autêntico, portanto, exigia uma segurança muito especial por parte do artista. Embora um exame atento da Capela Arena revele uma série de pequenas alterações, as formas arrojadas e expressivas de Giotto foram, na sua maioria, pintadas com a facilidade e precisão exigidas por essa técnica.
Mais adiante na vida de Giotto e possivelmente para satisfazer a demanda do imenso número de encomendas, passou a trabalhar sobre o estuque seco. Chamado fresco secco permitia ao artista trabalhar de maneira mais flexível, fazendo uso mais extensivo dos seus assistentes e realizando grandes trabalhos em pouco tempo, mas muito menos durável que a pintura sobre o gesso húmido. A tinta aplicada sobre o estuque húmido permitia que gesso ficasse impregnado com o pigmento. Assim, mesmo que esfolado superficialmente, não se perdia a cor que fazia parte do próprio estuque.

1.4. O ESTILO
Após a morte de Giotto, o poeta Bocaccio descreveu o pintor como o fundador de uma nova arte. Deste ponto em diante a lenda de Giotto cresceu. Tornou-se conhecido como o homem que deu vida à pintura, o pai do Renascimento. Para Bocaccio e seus contemporâneos, a conquista de Giotto foi a de regressar às formas da natureza. Abandonando o desenho convencional da arte bizantina, que se caracterizava pela repetição dos temas e do desenho, representando rostos humanos como se fossem copiados uns dos outros.
Passou a pintar captando a aparência do mundo tal como era, pintando num estilo novo e espontâneo. Ao fazer isto, reviveu as belezas da arte clássica esquecidas durante a Idade Média.
Embora esta visão de um Giotto naturalista possa parecer surpreendente, tendo em conta que a sua arte nos surge como gótica, não podemos esquecer que os críticos do tempo de Giotto o que estavam a admirar não era a qualidade verdadeiramente fotográfica do mundo exterior, mas sim a habilidade do pintor para extrair da natureza as suas formas essenciais, reproduzindo-as de maneira simples e expressiva. Embora antes dele, Cavalini e Cimabue se inspirassem nas esculturas clássicas e abandonassem o género bizantino, foi Giotto que concretizou esta tendência, desenvolvendo um estilo inédito de objectividade e naturalismo. Portanto com este artista houve um retorno à natureza, e um afastamento das rígidas tradições da arte bizantina. Ele transformou a fisionomia da pintura florentina, injectando nela, realismo, vida e expressão dramática.

1.5. O TEMA
Como já atrás mencionei, este fresco faz parte de um ciclo de frescos que retrata a vida de Cristo. O ciclo começa com a Missão de Deus a Gabriel e a Anunciação, e percorre as vidas de Joaquim e de Ana, – Os pais da Virgem, a vida da Virgem e a Paixão de Cristo. O Ciclo termina com um poderoso Juízo Final, que decora a parede de entrada. Portanto temos aqui a criação de uma obra-prima onde é ilustrado o tema da Redenção da Humanidade.
Todavia, este fresco está baseado nos relatos dos evangelhos de S. Lucas 22:47-51; João 18:1-3; Marcos 14:43-45; Mateus 26:47-52. São os quatro evangelistas que com mais ou menos detalhe relatam este acontecimento da prisão de Jesus. Diz por exemplo o evangelho de Mateus: “Ainda Ele falava, quando apareceu Judas, um dos doze, e com ele, uma grande multidão, com espadas e varapaus, enviada pelos príncipes dos sacerdotes e pelos anciãos do povo. O traidor tinha-lhes dado este sinal: «Aquele que eu beijar, é Esse mesmo. Prendei-O». Aproximou-se imediatamente de Jesus e disse: «Salve, Rabbi»! E Beijou-O. Jesus respondeu-lhe: «Amigo, a que vieste»? Então avançaram, deitaram as mãos a Jesus e prenderam-n’O.”
Portanto, pode ser chamado de o “O beijo de Judas”, mas também “A traição de Cristo”, como poderia ser chamado de “A prisão de Cristo no Horto”. O importante, é que podemos observar tal como nos outros frescos que, com Giotto se passa a uma nova concepção pictórica simultaneamente naturalista e volumétrica, na qual a figura humana adquire um lugar primordial.
A confrontação do perfil calmo e belo de Jesus com a face traiçoeira e quase bestial de Judas é uma das criações mais inspiradas de Giotto. Jesus está parado, inflexível, enquanto os soldados avançam para o prender; à Esquerda São Pedro enfrenta-os, cortando a orelha de Malco, servidor do Sumo-Sacerdote.
Nesta pintura de um nocturno, as figuras destacam-se volumetricamente sobre o fundo azul. As estruturas plásticas despojam os acontecimentos da temporalidade e evidenciam os momentos mais intensos de cada cena. Nenhum outro artista superou a capacidade de Giotto para ir directamente ao âmago de um tema.
Nesta cena o artista quis representar o momento de maior dramatismo psicológico da cena. Judas, com os lábios prontos para o beijo, parece recuar horrorizado ao perceber que Jesus está ciente da sua intenção traiçoeira. Cristo, resignado ao seu destino e envolto pelo imenso manto amarelo do seu traidor, encara serenamente os olhos culpados de Judas.

1.6. Conclusão
Este fresco ilustra bem uma das mais notáveis características de Giotto, que é a sua extraordinária capacidade de transmitir a emoção humana. Alegria, dor, ódio, medo, assim como os pensamentos mais profundos das suas personagens, são apresentados com uma intensidade de expressão sem precedentes na sua época. Um dos recursos frequentemente utilizados por ele para intensificar o seu efeito expressivo é o de colocar dois rostos juntos um do outro. Isto contribui para focar a atenção do observador para o centro do drama. Também retrata as suas figuras com o desenho mais simples possível, tornando mais fácil a leitura das imagens. Os melhores exemplos do grande poder expressivo de Giotto são as cenas que marcam o clímax das suas sequências narrativas, como é o caso deste fresco sobre a traição de Cristo.
A acção desenvolve-se paralelamente ao plano do quadro, e tem um efeito poderoso sobre o observador. Faz-nos sentir tão próximos do acontecimento que temos a impressão de tomar parte nele em vez de observá-lo à distância. Obtém este efeito por colocar a cena inteira no primeiro plano e apresentando-a de modo que o olhar do contemplador incida sobre a metade inferior da pintura. Assim, podemos imaginar-nos ao mesmo nível das figuras. A escolha deste ponto de vista fez época e Giotto foi o primeiro a estabelecê-la. A escolha implicou uma concepção consciente, de uma relação especial entre o contemplador e o quadro.

Levey, Michael, From Giotto to Cézanne – A Concise History of Painting, London, Thames and Hudson Ltd, 1962

Manfred Wundram – A Pintura do Renascimento, Tashen, (1998), «Épocas & Estilos»

Panofsky, Erwin, Estudos de Iconologia, temas humanísticos na arte do renascimento, 2ª Edição, Lisboa, Editorial Estampa, 1995

Walker, John, National Gallery of Art, Washington, D.C., Harry N. Abrams, inc. Publishers, New York

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