domingo, 8 de março de 2009

Paul Klee e a Máquina Chilreante

Klee era possuidor de uma imaginação extraordinariamente fértil que servia de fonte de exploração das fantasias e medos tipicamente humanos[1]. Este desenho de pequenas dimensões[2], cujo título aparece no canto superior direito é um exemplo do espírito alegre da obra de Klee, revelando um delicioso humor.[3]Máquina Chilreante” ou de trinados, como traduzem alguns, são duas palavras que referem os dois elementos que fundem literalmente o mundo natural com o mundo industrial, numa combinação do orgânico e do mecânico.
Enquanto o termo chilreante, se refere aos pássaros que aparecem no desenho e são tema recorrente na obra de Klee, a máquina é sugerida pela manivela, fazendo lembrar uma caixa de música em que os pássaros que permanecem de bicos abertos chilreiam quando se move a manivela. Os pássaros que praticamente só têm cabeças que se confundem com os bicos, não podem ser conectados com alguma ave conhecida, porém, de aspecto filiforme e bidimensional têm uma aparência lúdica e infantil.
Este é um dos mais surrealistas de todos os trabalhos de Klee, que parece ter sofrido uma influência directa e imediata do dadaísta Max Ernst. Embora superficialmente cómico, é também na época, uma cruel interpretação da moderna glorificação da máquina. A arte de Klee com a sua técnica extraordinariamente fácil e cor expressiva compara-se por vezes à caricatura ou a desenhos de crianças. No caso em apreço, existe uma afinidade entre os contrastantes sentimentos de humor e monstruosidade convergindo com os elementos formais para criar um trabalho intrigante, tanto na sua composição técnica como na multiplicidade de significados.[4]
Desde Janeiro de 1921 que Klee ensinava na Bauhaus, e por exigência de um ensino sistemático e pedagógico necessitava ter consciência do seu próprio método de trabalho, produzindo com propósito explicativo e demonstrativo uma enorme quantidade de esboços, desenhos e aguarelas, simplificados do ponto de vista da composição, mas comunicativos no plano expressivo e rítmico. Este trabalho ilustra bem o alfabeto mágico de Klee, ao desenhar aves que são reconhecidas como tal, apenas pelos bicos e silhuetas de penas, aparecendo muito próximo das deformações da natureza.
No plano cromático, é criado um ambiente de aparência nocturna quase místico, pelo delicado e transparente azul-marinho no qual o azul frio parece expulsar o rosa de temperatura mais quente, como se tratasse de uma invisível força centrífuga, criando uma sensação geral de movimento do centro para a periferia.
Este movimento é sugerido tanto pelo uso das cores que acabámos de descrever como pelo movimento giratório da manivela e o chilreio que daí parece resultar, concedendo vida a este conjunto de linhas. Do ponto de vista analítico, “cada obra não é desde logo um produto acabado, mas obra de devir,” como diz o autor. Neste caso, embora começando num dado momento e com um dado motivo, cresce para lá de cada um dos órgãos, transformando-se em organismo. Neste sentido podemos falar de uma anatomia particular deste quadro, no qual Klee aplica os seus ensinamentos sobre as articulações tripartidas que geram movimento[5], e que de acordo com o livro dos Esquissos Pedagógicos que contêm matéria para uma parte do ensino teórico da Bauhaus[6] em Weimar, são linhas geradas por um ponto levado a passear.
Paul Klee ensinava aos seus alunos o valor dos diversos elementos plásticos, dos quais o mais simples – o ponto, é capaz de produzir os mais complexos. A partir do ponto em movimento gera-se uma linha, e dela, nascem muitas formas sobre o plano. Nesta dança rítmica com o traço, o artista desenha uma coreografia irrepetível, como acontece na dança se o coreógrafo impõe as linhas mestras, mas o bailarino tem a liberdade de improvisar como se fosse um executante de música ‘jazz’. Nesta dança em que o artista actua como bailarino, participa de um jogo em que as regras não estão totalmente estabelecidas, porém, vai delineando a coreografia, compondo a melodia, buscando as harmonias e estabelecendo os ritmos. Não nos admiramos que exista em Klee esta capacidade para a ‘polifonia pictórica’, pois como músico, aplica na pintura os seus conhecimentos de harmonia e composição.[7]
Este é um jogo muito diferente do xadrez, em que os jogadores jogam, mas jamais se tornarão uma peça do tabuleiro. Têm uma mera participação intelectual de cariz lógico-matemático. No caso da criação artística o jogador é também uma peça do xadrez, peão ou rei, pouco importa, mas é com toda a certeza um ingrediente, sem o qual o resultado nunca seria o mesmo. Enquanto no caso do xadrez, independentemente dos jogadores participantes, da demora do jogo, e do número de jogadas, o resultado será sempre o mesmo, um xeque-mate ao rei significando a vitória de um ou de outro jogador.
Paul Klee tornou-se participante activo neste complicado jogo em que o ponto não pode ser pontapeado como uma bola de futebol com desfecho aleatório da jogada, mas antes conduzido por uma linha, recta, curva, torça, não importa, mas cuja trajectória construirá uma estrutura da qual emergem sínteses de figuras, que neste caso, com o recurso da transparência são desmaterializadas e a continuidade do espaço é interrompida.
Se é verdade que não há um estilo distintivo onde a obra de Klee possa ser enquadrada, existe uma dívida para com os cubistas, porém, ao contrário deles não dava importância aos objectos, mas antes ao processo de desenvolvimento do mundo físico. Assim, ainda que os seus quadros tenham uma organização similar à dos cubistas o desenho era linear e de estilo marcadamente pessoal, permanecendo um independente. Fascinado pela obra de Delaunay, amigo e contemporâneo de tantos outros artistas influentes, próximo de várias correntes artísticas e de grupos de vanguarda da época, todavia, o facto é que na década de 20 quando realizou a Máquina Chilreante Klee já deixara para trás há muito tempo, as técnicas das principais escolas do século XX.
Com efeito, embora com um estilo muito próprio e avançado, existem relações intrínsecas de reciprocidade entre a sociedade e a arte, em que cada um dá e recebe numa certa medida. Usando a metáfora da árvore Klee mencionou este efeito recíproco, pois se a beleza da copa passa por ele, no lugar que lhe foi atribuído no tronco, através da captação do que o rodeia, também em sentido inverso a própria copa interage com o ambiente, no qual a humidade e a luz intervêm na vida da mesma e no desenvolvimento do tronco e das raízes. Se não fossem as folhas da copa e a luz que lhe permite realizar a fotossíntese o que seria da árvore? Isto significa que para lá do que recebe do meio e mediunicamente dá à obra, esta por sua vez dá algo ao meio, afecta-o, altera-o, recebendo depois o artista ecos dessa intervenção fechando assim o círculo de uma comunicação feita nos dois sentidos.
Por isso, a obra de Klee e as suas inquietações artísticas não se deveram apenas às viagens feitas, nem à contemplação mas também à participação na exposição com os surrealistas[8], ao contacto com o grupo “Cavaleiro Azul[9]”, à sua formação como músico e às correntes de pensamento e produção artística da época. Há que lembrar que paralelamente ao expressionismo, o abstraccionismo e às experiências na Bauhaus, existiam o construtivismo russo, o cubismo, o surrealismo, etc.
“Quando a sociedade, preocupada com o seu verdadeiro rosto, procura espelhos onde possa descansadamente mirar-se, então surgem as testemunhas da realidade, pintores, romancistas ou dramaturgos que recompõem e lhe oferecem essa imagem desejada”[10]. Portanto, não obstante a arte de Klee seja um reflexo da sociedade do ponto de vista sociológico e psicológico, do ponto de vista artístico é um avanço significativo e o desenvolvimento de um novo vocabulário do qual este quadro é apenas um exemplo.

BIBLIOGRAFIA
AAVV., Os grandes artistas modernos, Difusão Cultural, Lisboa 1990.
ARNHEIM, Rudolf, - A Arte & Percepção Visual – Uma psicologia da visão Criadora, S. Paulo, Pioneira 1980 (Nova Versão).
BASHET, Roger, La peinture contemporaine – de 1900 a 1960, Les Editions de L’illustracion, Paris, 1961.
FERRIER, Jean-Louis, Paul Klee, Finest SA/Pierre Terrail Editions, Paris, 2001
FRANCISCONO, Marcel, Paul Klee – His work and thought, The University of Chicago, London, 1991.
HALL, Douglas, Klee, Phaidon Press Limited, London, 1992.
HUISMAN, Denis, - A Estética, Edições 70, Lda, Lisboa, 1994.
Http://www. Artchive.com/artchive/K/Klee.html
KLEE, Paul, Escritos sobre arte, Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2001.
PONTY, Merleau, O olho e o espírito, Editora Veja, 2002.
PONTY, Merleau, O visível e o invisível, Editora Perspectiva, S. A. São Paulo, 2003.
[1] A obra de Klee situa-se entre as mais variadas e complexas da arte do século XX. A sua produção é enorme, e sem nunca se repetir, passa da figuração para uma abstracção quase pura. Embora a sua imaginação tenha servido de fonte de exploração, muitas vezes inspirou-se directamente nos acontecimentos da sua vida, como é o caso das viagens que realizou.
[2] Tal como o eram a maioria das suas obras, sendo por isso apontado como miniaturista.
[3] Não foi só o humor de alguns trabalhos, mas também o vibrante esplendor de outros, que o tornaram popular. Contudo, os seus últimos trabalhos, mostram a força com que se pode exprimir o lado mais sombrio da condição humana, como disso é exemplo “Morte e Fogo, um trabalho intenso e surpreendente.
[4] Como ele próprio disse: “A arte não reproduz o visível, torna visível.” KLEE, Paul, Escritos sobre arte, Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2001, pág. 38
[5] Para Klee, as articulações tripartidas que geram movimento, são compostas de linhas activas, que retardadas, se movem entre determinados pontos, ou que se desenvolvem livremente, como se fizessem um passeio pelo passeio. Linhas mediais, que produzem efeitos de superfície, e ainda as linhas passivas resultantes de um factor activo de superfície (linha contínua). Em qualquer dos casos o agente é sempre um ponto que se desloca.
[6] Escola fundada em Weimar, em 1919, por Walter Gropius, onde Klee leccionou de 1922-1931, na qual Kandinsky também se juntou a ele em 1922.
[7] Este violinista, filho de músicos, decidiu-se pelos caminhos das artes visuais, em 1902 nasceu em 18 de Dezembro de 1879 perto de Berna, numa família de músicos. Estudou música, depois pintura, em Munique, em Itália e em Berna
[8] Primeira exposição surrealista em Paris em 1925
[9] Os artistas do grupo “Cavaleiro Azul” (Blaue Reiter) eram Kandinsky, Marc e Macke. Conheceu-os em 1911 na mesma altura em que conhece Kubin e Jean Arp.
[10] HUISMAN, Denis; - A Estética, Edições 70, Lda., Lisboa, 1994, p. 101

Sem comentários: